- André Botinha
A mãe digital
Atualizado: 1 de Mai de 2020

Sempre me senti como um espírito velho. E, por isso, tenho que confessar que me sinto bem em escrever algo contra o movimento digital e a tecnologia.
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Não estou aqui dizendo que não reconheço sua importância nas nossas vidas. Mas, é como aquela sensação que temos com certas pessoas, sabe?
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“Reconheço que é uma ótima profissional e vejo os retornos que ela traz para a equipe, mas, por algum motivo, fico meio cabreiro, entende?...não confiaria a ela nada que seja realmente importante para mim”.
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E, como pediatra, tenho razões a mais para agir assim. Me explico:
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A ciência não permite sensibilidades. Qualquer tipo de emoção vai frontalmente contra o método científico.
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Distorce variáveis, confunde resultados. Uma lástima!
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Na ciência, temos que agir como Têmis (a deusa da Justiça): colocar uma venda nos olhos e refrear nossa natural subjetividade. O afeto não pode influenciar nossa percepção.
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É imprescindível deixar de lado toda suscetibilidade às emoções para podermos avaliar de maneira fria e imparcial os dados que se desenham a nossa frente.
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Mas, (sorte a nossa!) não há nada tão contrariamente oposto a isso como a maternidade! Para se ser uma mãe suficientemente boa, é fundamental dar vazão aos sentimentos mais íntimos e confiar neles. Toda a subjetividade e calor humano são bem-vindos para essa tarefa!
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Isso é intuitivo, não? (e é assim que deve ser!). De qualquer forma, tenho um caso que ilustra o que estou falando:
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Uma vez, acompanhei um casal com retardo mental que acabou tendo um filho.
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O que se poderia esperar? Como iriam cuidar dessa criança?
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Havia uma ansiedade geral, uma previsão de algo trágico para esse bebê...
Como ela vai aprender a amamentar? Conseguirá dar o banho em temperatura adequada e sem colocá-lo em risco? E a posição mais segura para dormir? Será que entendeu os dias em que terá que vir à unidade de saúde para as consulta de rotina e para as vacinas? Como estimulará o bebê a adquirir os marcos esperados em cada idade?!...
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Surpreendentemente, a maternidade, pelo menos nos primeiros meses de vida, parece algo mais visceral do que cortical.
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Em outras palavras, para se cuidar de um bebê, é preciso mais coração do que cérebro.
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Essa mãe era incapaz de compreender uma única orientação que lhe fosse dada por qualquer um dos membros da equipe. Mas, sabia o que tinha que fazer com aquele bebê nos braços.
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Ela não precisava da gente. Éramos nós que precisávamos dela.
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Ela amamentou o bebê de maneira exclusiva até os seis meses de idade.
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Apesar da condição social de risco, até o primeiro ano de vida, a criança praticamente não adoeceu e se desenvolveu muito bem.
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Adquiriu todos os marcos que a ciência nos diz que uma criança “normal“ precisa de ter nessa idade, neuro e psicologicamente.
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Era uma criança ativa, feliz e saudável.
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Depois, não tive mais notícias do caso. Mas, até onde pude acompanhar, a tragédia que se anunciava não se concretizou. Ela teve todo o amor de que precisava.
Comecei a rever meu papel como pediatra depois dessa experiência...
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O nosso mundo racional funciona de maneira tão distinta...
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Achamos tão indispensável o domínio da razão para sermos bem sucedidos...
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Às vezes, me sinto como José Dias em Dom Casmurro - caminhando ao lado de Bentinho, cumprindo seu dever amaríssimo: “a premissa antes da consequência. A consequência antes da conclusão.”...exigências de um mundo moderno...
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Em Instantes, poema atribuído a Jorge Luis Borges, o autor diz ter sido um daqueles que nunca ia a nenhuma parte sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas!
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Mas, que se pudesse voltar a viver, viajaria mais leve nessa segunda chance...
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Confesso! Jamais conseguiria adotar o estilo de vida que o poeta sugere.
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Mas, em se tratando da maternidade, não tenho dúvidas de que é preciso “contemplar mais entardeceres, subir mais montanhas e nadar mais rios” como no poema.
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Não há que se aplicar muitos modelos e regras a algo tão humano e profundo como a maternidade.
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Correntes de mães digitais
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Você já é digital?
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Tenho tido uma preocupação crescente com um sentimento generalizado de que exista um Manual da Maternidade.
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Tem se tornado corriqueiro ver mães com listas de apps, caderno e canetas, gráficos, um cronômetro e um kit de sobrevivência vasto, sem o qual a maternidade seria pretensamente impossível.
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Me parece preocupante o que a onda digital tem determinado.
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Não há nada de errado em buscar orientações e conhecimento. Mas, quando vejo mães inseguras, se sentindo reféns da tecnologia, passo a pensar que há um exagero nocivo em tudo isso.
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Nada contra os grupos de mães online e a troca de experiências que as inovações possibilitam. Acredito que isso seja saudável e muito positivo.
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Mas a tecnologia tem aplicado o método científico ao exercício da maternidade!
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E isso é preocupante.
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Temo quando vejo nossa sociedade caminhando para o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. A atualidade do livro, passados 80 anos de seu lançamento, é no mínimo incômoda...
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Seria possível um retorno às origens?
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Hoje, acho que isso se chama Vintage...não sou muito bom com vocabulários recentes. E vou continuar tendo minhas idéias, ao invés de ideas. Me recuso a tirar o acento...
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Fico pensando se, algum dia nessa trajetória, teremos algo como o Bra Burning, de 1968: “Queimem seus celulares”!
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Nas atuais circunstâncias, me parece impossível ou, na melhor das hipóteses, muito distante. Estamos imersos na tecnologia, é verdade.
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Mas não haverá espaço para as panelas velhas fazerem boa comida?
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Será mesmo necessário ter tantas orientações?
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Quais os problemas ocultos na fantasia da dita mãe de primeira viagem?
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A preparação
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A mulher começa a ser treinada para ser mãe no dia em que nasce e começa a receber os cuidados da sua mãe.
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Recebe um treinamento intensivo durante seus primeiros anos de vida. Pratica com suas bonecas, com seus irmãos e, mais tarde, com seus sobrinhos, primos, filhos de amigas...
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Além disso, e aqui cito Winnicott, “acontece que existe esse período muito útil de nove meses ao longo do qual há tempo suficiente para que ocorra uma transformação importante na mulher. [...]
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Ela comumente entra numa fase na qual, em grande parte, ela é o bebê e o bebê é ela. [...].
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Quando o bebê já está pronto para nascer, a mãe sabe muitíssimo bem quais são as necessidades do bebê. Nesse ponto ela está e age naturalmente. E é nesse ponto que ela não pode aprender nada nos livros. [...].
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Quando uma mãe é capaz de ser mãe com toda naturalidade, jamais devemos interferir.”...
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E isso apenas do ponto de vista individual.
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Do ponto de vista biológico, o treinamento dos mamíferos começou há cerca de 200 milhões de anos e dos primatas há cerca de 50 milhões...
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É essa carga genética, de alguns milhões de anos de cuidado, que levamos em nossos instintos...
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Acredito que seja tempo suficiente...
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Para concluir, deixo vocês com um texto de Winnicott.
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A mãe dedicada comum
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“Como dizer algo de novo sobre um assunto já por tantas vezes abordado? Meu nome ficou muito ligado a estas palavras, e talvez eu deva, inicialmente, dar algumas explicações.
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Vejo que não posso deixar de dizer o óbvio. Faço uma observação banal quando digo que com a palavra ‘dedicada’ quero simplesmente dizer dedicada.
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Suponhamos que vocês estejam encarregadas de providenciar as flores para o altar de sua igreja, no final de cada semana.
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Caso assumam a responsabilidade, não se esquecerão de cumprí-la. Às sextas-feiras vocês certamente estarão tomando todas as providências para que as flores lá estejam para serem arrumadas;
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se vocês ficaram gripadas, começarão a telefonar ou mandarão um recado para alguém através do leiteiro, mesmo que não lhes agrade a idéia de o trabalho ser feito por outras pessoas.
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Quando a congregação se reunir no domingo, jamais irá se deparar com um altar vazio ou com flores mortas em vasos sujos enfeiando o altar, ao invés de enfeitá-lo.
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Ao mesmo tempo, porém, não se pode afirmar, espero, que vocês vão ficar perturbadas ou preocupadas de segunda a quinta.
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O assunto está simplesmente adormecido no fundo de suas mentes, e ao tornar-se ativo, na sexta-feira ou talvez no sábado, faz com que vocês também se lembrem da responsabilidade assumida.
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Da mesma forma, as mulheres não ficam o tempo todo agitadas, pensando que deveriam estar tomando conta de um bebê.
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Jogam tênis, têm um trabalho [...] e fazem, com bastante naturalidade, todo tipo de coisas [...]. Em relação ao caso das flores para o altar, isso equivale ao período de segunda a sexta.
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Então, um dia, descobrem que se tornaram anfitriãs de um novo ser humano que decidiu alojar-se nelas e fazer um número sempre maior de exigências até algum dia, num futuro muito distante, quando novamente haverá paz e tranquilidade, e elas, estas mulheres, poderão voltar a exercer uma forma mais direta de auto-expressão.
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Durante este período prolongado de sexta-sábado-domingo, estiveram atravessando uma fase de auto-expressão através da identificação com algo que, se a sorte ajudar, se transformará em um bebê que irá se tornar autônomo, mordendo a mão que o alimentou.
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[...]
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Com o tempo, o bebê começa a precisar da mãe para ser malsucedido em sua adaptação – e esta falha também é um processo gradual que não pode ser aprendido nos livros.
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Para uma criança, seria muito aborrecido continuar vivendo uma situação de onipotência quando ela já dispõe dos mecanismos que lhe permitem conviver com as frustrações e as dificuldades de seu meio ambiente.
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Viver um sentimento de raiva, que não se transforma em desespero, pode trazer muita satisfação.
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Qualquer dos pais aqui presentes saberá o que quero dizer quando afirmo que, por mais que vocês tenham submetido o seu bebê às mais terríveis frustrações, jamais deixaram de apoiá-lo. [...]
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Nunca aconteceu de o bebê acordar gritando e não haver ninguém por perto que o ouvisse. Em outro termos, vocês constataram que nunca tentaram fugir de suas responsabilidades para com o bebê através de mentiras.
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Mas, naturalmente, tudo isso implica não apenas que a mãe tenha sido capaz de dedicar-se integralmente a esta preocupação com os cuidados para com o seu bebê, mas, também, que ela teve sorte.
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Não preciso começar a enumerar as coisas que podem acontecer até mesmo nas famílias mais ajustadas.
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[...]
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Devo, agora, retomar a idéia de culpa. [...]
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De minha parte, não tenho qualquer interesse em distribuir a culpa. Mães e pais culpam-se, mas esta é outra questão, e de fato eles costumam culpar-se por quase tudo, [até pelo que] nenhum deles certamente pode ser considerado responsável. [...]
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‘Até que ponto terei sido boa enquanto mãe?`
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[...] Não podemos reconhecer o valor positivo do fator `mãe dedicada comum` de nenhuma outra forma – a necessidade vital que tem cada bebê de que alguém facilite os estágios iniciais do desenvolvimento da personalidade mais imatura e absolutamente dependente, que é a personalidade humana.
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Em outras palavras, não acredito na história de Rômulo e Reno, por maior que seja o meu respeito pelas lobas.
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Alguém humano encontrou e cuidou dos fundadores de Roma, se de fato pretendemos atribuir alguma verdade a este mito.
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Não vou além a ponto de afirmar que nós, como homens e mulheres, devemos alguma coisa a cada uma das respectivas mulheres que fizeram isso por nós.
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Não lhes devemos nada.
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No entanto, para nós mesmos, devemos um reconhecimento intelectual do fato de que, no início, éramos absolutamente dependentes psicologicamente, e, por 'absolutamente', quero dizer absolutamente.
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Felizmente, recebemos de nossas mães a atenção que comumente elas dão aos bebês."
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D. W. Winnicott, Os bebês e suas mães, 1987.